O medo de que ilhas e cidades litorâneas sumam do mapa é real
Pesquisador da USP fala sobre barreiras que têm como base a natureza para segurar o avanço do nível do mar a longo prazo

Sempre que se fala sobre o risco de cidades litorâneas e as ilhas serem engolidas pelo aumento do nível do mar, a impressão que se tem é que estamos falando de algum filme de ficção científica ou de previsões apocalípticas. Mas ainda que seja um processo lento, acredite, já está acontecendo aqui no Brasil e em algumas partes do mundo. Isso porque essas regiões estão na linha de frente da crise climática e enfrentam risco real de submersão.
No Brasil, cidades como Recife, Santos, São Luís, Rio de Janeiro e Florianópolis, por exemplo, já apresentam impactos crescentes de erosão costeira, inundações permanentes em áreas baixas e avanço do mar. Há lugares no mundo, especialmente pequenos Estados insulares (Tuvalu, Kiribati, Maldivas etc.) que estão comprovadamente ameaçados de desaparecer do mapa.
Sinal dos tempos? Fim do mundo? Calma que ainda temos um respiro, um sopro de esperança eu diria, trazido por especialistas e pesquisadores que acompanham de perto esses fenômenos e vão encontrando soluções. Algumas ações inclusive, já estão sendo feitas, como a proteção física (engenharia costeira) com diques, barreiras e muros de contenção, que são estruturas para segurar temporariamente o avanço do mar. São obras caras, de manutenção contínua e que podem gerar outros impactos.
Assim, as melhores soluções têm como base a natureza. Nesse sentido, a restauração de manguezais, recifes de coral, dunas podem funcionar como barreiras naturais. Essas são soluções mais baratas no longo prazo e aumentam a resiliência local.
Ainda de acordo com o pesquisador do Centro de Síntese Cidades Globais (CSCG) do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, Alejandro Dorado, também existem ações como o recuo planejado onde o avanço do mar é inevitável. Isso exige deslocamento gradual e planejado das populações, a proibição de novas ocupações e o redesenho da ocupação urbana com a transformação de zonas de risco em áreas que possibilitem as inundações e o amortecimento. Em resumo, é necessário planejamento e governança. As adaptações exigem tecnologia, restauração, financiamento e, principalmente ação política rápida e coordenada.
Será possível unir tudo isso a tempo de evitar o pior dos cenários? Aproveitando o gancho, enviei algumas perguntas ao especialista e pesquisador da chamada drenagem sustentável, algo que evitaria que grandes centros urbanos sofressem com as enchentes e as ilhas de calor. Ele é um legítimo defensor do uso de mecanismos naturais para promover a adaptação climática das cidades brasileiras. Confira abaixo o que diz o professor Alejandro ao Blog Fiscal do Clima.
1. Professor, se fala muito em transição energética como solução no combate às mudanças climáticas. Mas em uma cidade cheia de problemas estruturais sabemos que é preciso fazer muito mais do que isso para evitar grandes enchentes e inundações. Você pode citar como exemplo quais seriam essas mudanças?
Cidades latino-americanas como São Paulo, com problemas históricos de planejamento estão sofrendo as consequências da falta de adaptação às mudanças climáticas. Assim, a troca de combustíveis fósseis por fontes renováveis é fundamental para reduzir as emissões de GEE, mas não resolve sozinha os impactos locais das mudanças climáticas, como enchentes e inundações nas cidades.
As mudanças devem ir na direção da infraestrutura adequada (p.e. infraestrutura verde e soluções baseadas na natureza). Assim, a criação de áreas verdes permeáveis (parques, praças, jardins de chuva) podem ajudar na absorção de água. Da mesma forma, devem ser recuperadas várzeas, brejos e encostas que funcionam como esponjas naturais. Por outro lado, os rios urbanos deveriam ter margens permeáveis.
Nesse sentido, a requalificação da infraestrutura urbana é fundamental. Deveria ser buscado um aumento da permeabilidade do solo, a ampliação e modernização dos sistemas de drenagem urbana, piscinões e galerias pluviais.
Esse reordenamento territorial urbano deve ar pelo controle da ocupação em áreas de risco (bastante frequente na periferia de São Paulo) como encostas e margens de rios e córregos. Em consonância com essas ações, devem ser elaboradas políticas públicas para remoção gradual e com justiça social de populações em áreas altamente vulneráveis.
Hoje, a cidade de São Paulo tem uma gestão de risco e adaptação climática. Porém, ainda não é suficiente. Temos sistemas de alerta precoce para chuvas intensas e inundações, planos de contingência e treinamento e estamos atualizando o Plano Diretor e os planos de mobilidade urbana, incorporando critérios de resiliência climática. Agora precisamos integrar essas ações com políticas de mitigação. Ou seja, além de adaptar, a cidade deve reduzir suas emissões com mobilidade sustentável, eficiência energética e gestão adequada de resíduos e aproveitamento energético.
O combate às mudanças climáticas em cidades como SP exige uma estratégia integrada entre mitigação (reduzir emissões) e adaptação (enfrentar os impactos já em curso). Nesse sentido, a transição energética é fundamental, mas precisa caminhar junto com uma profunda transformação urbana, ecológica e social para enfrentar os riscos dos desastres climáticos.
2. Adaptar algo que já foi construído de forma mal planejada costuma exigir muito investimento e grandes obras. Como é possível tornar isso viável justamente por depender de ações do poder público?
Essa questão é desafiadora e extremamente pertinente para qualquer debate sério sobre resiliência urbana e justiça climática. De fato, adaptar cidades que já foram construídas de forma mal planejada é um enorme desafio, tanto técnico quanto econômico e social. Para isso é necessário um planejamento com base em priorização de riscos. Ou seja, investir onde os impactos são maiores (p.e. bairros mais vulneráveis). Também é importante priorizar intervenções de baixo custo e alto impacto (p.e. infraestrutura verde).
Podem ser adotadas, por exemplo, ações relativamente econômicas como a drenagem urbana sustentável, um conjunto de soluções que buscam imitar o ciclo natural da água.
Alguns exemplos como a transformação de áreas sem ocupação (terrenos baldios) em jardins de chuva, rever a estrutura de praças para que funcionem como bacias de retenção temporária e substituir calçadas e ruas com materiais drenantes.
Também podem ser adotadas parcerias público-privadas para um financiamento climático, com bancos de desenvolvimento (BID, CAF, BM, BNDES), fundos internacionais como o Global Environment Facility (GEF) e programas de organismos multilaterais.
Outra fonte de recursos pode ser a outorga onerosa do direito de construir com a aplicação de instrumentos já previstos no Estatuto da Cidade.
Finalmente, precisamos integrar soluções planejadas para décadas com os planos da cidade e criar fundos blindados de ciclos políticos curtos.
Em resumo, para tornar viável o investimento necessário precisamos de inteligência técnica, inovação financeira e força política e social.
3. Alguma cidade brasileira seria exemplo de adaptação climática? Ou existem apenas referências desse tipo em outros países?
Sim, nossa SP é uma referência com avanços (em forma desigual), como os programas “Córrego Limpo”, “Renaturalização de Rios”, criação de Parques Lineares (Bruno Covas, p.e.) para reduzir enchentes, o PlanClima SP, que inclui ações de adaptação.
Outras cidades brasileiras como Curitiba, Recife, Campo Grande, Vitória têm elaborado Planos Locais de Ação Climática (PLAC) com foco na adaptação, criação de parques urbanos integrados à drenagem, recuperação de córregos, integração de soluções costeiras (barreiras naturais, manguezais e controle de erosão).
Em resumo, o Brasil tem bons exemplos, mas ainda em escala muito limitada e fragmentada. O desafio está em transformar essas ilhas de excelência em política pública estruturante e obrigatória, especialmente nas periferias urbanas, onde o risco climático é mais intenso.
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